João Tabarra


O degelo de João Tabarra

21.05.2010 - José Marmeleira


O Outro
O regresso de uma das figuras mais necessárias da arte contemporânea portuguesa às questões essenciais da condição humana.
Quase 20 anos depois do seu aparecimento, a obra de João Tabarra (Lisboa, 1966) continua uma das mais necessárias da arte contemporânea portuguesa. Não apenas pelas perguntas que coloca, mas pela ficções, as histórias que representa. Estivemos todos nelas como homens comuns, e voltamos a lá estar em "Les Limites du Désert", a exposição individual que amanhã inaugura em Lisboa, na Galeria Graça Brandão, numa co-produção com a BLACKMARIA.
Convém, no entanto, abrir um parêntesis curto, e porventura várias vezes repetido, para lembrar o caminho de João Tabarra. Autodidacta, passou pelo fotojornalismo e cruzou uma parte dos anos 90 ao lado de uma série de artistas que propunham uma crítica do real e dos media. Depois, já neste século, seguiu um percurso solitário e afirmado em diversas exposições individuais e colectivas, em Portugal e no estrangeiro, e na participação em 2002 na XXV Bienal de São Paulo, com o comissariado de Miguel von Hafe Pérez. Hoje, a fotografia e vídeo continuam a ser os instrumentos que tem à mão e com que trabalha, e o contexto político não abandonou as imagens em movimento que compõem a sua obra. Permanecem no que agora apresenta na Graça Brandão: uma projecção única de 13 filmes, três fotografias e mais um filme.


A clausura como método
"Les Limites du Désert" é a exposição que se segue a "G", realizada em 2007 na Graça Brandão e na Galeria Zé dos Bois, e interrompe dois anos de recolhimento distante das mundaneidades do meio e aberto, apenas, a leituras, filmes, música, conversas. Um método de trabalho? "Não lhe daria esse nome", responde o artista, "talvez seja antes um feitio. Tento sempre ficar numa espécie de clausura, para perceber o que como autor posso ainda propor. E passo dois anos em reflexão, em investigação, em pensamento. É muito importante para mim".
A exposição anterior, se não determinou, pelo menos motivou este período sabático. "O primeiro ano serviu para me afastar, para conseguir ver. Para interrogar aquilo que fiz e encontrar um sentido por onde podia continuar a trabalhar. Ou a fazer proposta reflectidas em vez de objectos". O resultado foi, entre outras coisas, o reencontro com uma linha de preocupações e questões. "Não me interessa o novo, a invenção. Acabei por me sentir bem com este reencontro esclarecido", admite. E, com efeito, João Tabarra traça para nós um território reconhecível, habitado por personagens, alegorias e situações, umas cómicas, outras violentas, todas irremediavelmente humanas, e quase sempre interpretadas pelo próprio. Veja-se o homem que tenta sair da piscina vazia em "Le Jardin", ou que tomba ao som de um bala em "Grito", ou que sacode dos ombros um anjo altivo depois de este lhe apontar o mar como destino seguinte ("Les Limites du Désert").
Se o tempo foi importante na materialização das peças - algumas já tinham sido escritas, sob a forma de guiões, em 2006/07 -, também o é na experiência das obras, em particular na projecção dos filmes, a que Tabarra dá o nome de "fragmentos sensíveis": "Ao montar os filmes todos numa só projecção, não imponho nenhuma narrativa, nenhum princípio, meio e fim. Consigo obter uma distância perante o que fiz enquanto autor e, ao mesmo tempo, deixar um espaço de total liberdade ao espectador. Ou seja, em vez de 'artificializar' um fragmento, um filme, e repeti-lo em 'loop', permito ao receptor uma experiência singular, uma narrativa que ele próprio constrói". Não se trata de facilitar, assegura, mas de "propor um tempo que é também um pedido e uma proposta. É preciso tempo, eu preciso de tempo. Daí ter decidido não encurtar esta peça".
João Tabarra justifica este atrevimento de solicitar 50 minutos - a duração da projecção única - ao público com a depuração a que sujeitou as formas e as questões. Por exemplo, no que diz respeito à dimensão mais performativa: "O lado burlesco está muito presente, não consigo fugir de mim próprio, mas a performatividade, que noutras peças transpirava um certo esforço e um movimento, está aqui mais controlada. Há um maior esclarecimento, maior sabedoria. Sem truques, berloques, coisas escondidas, com outra complexidade".
O único filme projectado fora da sequência livre, "Viagem I" mostra um homem (o artista) a atirar ao mar uma pedra. Esta salta e, quando esperamos que desapareça na água, fica suspensa na imagem. Um desafio às leis da gravidade? Uma intervenção no tempo da imagem? Diz-nos o artista: "Toda a exposição percorre espaço, leveza, gravidade, viagem, mito, suspensão, fragmento, e esse trabalho ajuda-me a criar, no espaço da galeria não só o equilíbrio de que preciso em toda a instalação, como a tensão e o tempo necessários". Entretanto, as fotografias, tal como "Viagem I", apresentam os espectadores a certos motivos que reaparecem nos filmes. Os mitos, os símbolos (o duplo em "O Outro", a morte ou o cavalo em a "Queda") e uma certa personagem perante horizontes que delimitam fronteiras (o homem de pasta na mão e tronco de madeira debaixo do braço, em "Viagem").
Diante da condição humana
O facto de nenhuma das obras encerrar o seu significado é um aspecto que o artista destaca, por exemplo, a propósito de "Degelo II" e "Degelo III, Abrigo". No primeiro, há uma personagem a sair de um caule de uma árvore, no segundo, a aninhar-se nas suas raízes: "Têm uma ambiguidade que não quis resolver, e precisamente ficou mais forte porque ficou ambíguo em mim", considera. "Não sei se as personagens são sobreviventes ou novos homens". A mesma interrogação estende-se a "A Troca" e, em particular, a "Le Homme Qui Rit", filme que mostra um homem estendido na praia, a rir-se enquanto as vagas lhe batem no corpo: "As pessoas podem estar olhar para um náufrago, mas afirmo no título que ele não é um náufrago. É apenas um homem que ri. Não se sabe se está a rir porque sobreviveu, porque está de partida ou porque acabou de chegar. E não sabemos que tipo de viagem está para acontecer, ou já aconteceu".
Outros filmes dispensam, aparentemente, as personagens. Descrevem antes situações, cenas nas quais se insinuam metáforas, pequenas alegorias, como o certeiramente intitulado "História da Selva", que narra a resistência de um bichinho de conta a um manipulador e gigante dedo. Os sentidos que este filme sugere são múltiplos e, na sua modéstia visual, tocam uma rara universalidade. Já "Degelo" é um dos filmes visualmente mais apelativos de "Les Limites du Desert". "É uma peça de que gosto particularmente. Por ser desconcertante e se tratar de uma imagem muito calma. Um riacho de água a correr e dois elementos que nós, enquanto seres humanos, reconhecemos: o peso e o real. Mostro um martelo e uma pena e coloco-os ao mesmo nível sobre a água de modo a que não se desloquem. Como uma provocação às leis da física". O filme remete, também, para o processo de trabalho que antecedeu a exposição. Referimos-mos ao afastamento a que o artista se sujeitou para com "a solidão necessária voltar a escrever, a propor arte, a ver as portas que tinham ficado abertas e que podia resolver de outra forma".
Nesta obra, uma das portas que continua aberta é a sua dimensão política e histórica. "O meu trabalho não foge da condição humana. Sempre foi uma coisa que me interessou, inclusive pessoalmente, e se isso acontece é natural que transborde para o que faço e naquilo que procuro. Sei que são palavras fora de moda, mas que possibilidade de vida, de amor, de verdade existe hoje? Estas perguntas, assim como as questões básicas da metafísica, continuam para mim apaixonantes. É claro que podemos vê-las numa caneca ou numa t-shirt, mas continuo a achar que uma das coisas que me permitem afirmar que sou artista é precisamente essa busca, essa procura".
"Les Limites du Desert" é novo território, ou o momento mais recente dessa viagem. Embarquemos nela. Provavelmente o deserto ficará para trás. Ou será outra coisa qualquer quando a travessia terminar.